FRAGATA JOÃO BELO
Uma história de Marinha e de
Marinheiros
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A Fragata João Belo, navegando em mar calmo |
ANTES DE INICIAR A PUBLICAÇÃO DO NASCIMENTO DA FRAGATA COMANDANTE JOÃO BELO, VAI SER FEITA A NARRAÇÃO DE UMA HISTÓRIA VERÍDICA, ESCRITA POR UM MARINHEIRO DA 1ª GUARNIÇÃO (1967-1970).
É UMA HISTÓRIA QUE TEM UM INICIO DIVERTIDO E UM FINAL TRISTE!
ESTE ACONTECIMENTO TEVE O SEU INÍCIO NA ESCOLA Nº1 DE ALUNOS MARINHEIROS DA ARMADA, NA RECRUTA, NUMA AULA DE NATAÇÃO E TERMINADA NA FRAGATA JOÃO BELO, NA GUINÉ.
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ESCOLA Nº 1 DE ALUNOS MARINHEIROS DA ARMADA ( Vila Franca de Xira-1967)
(Foto propriedade do blogger)
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NOTA DO BLOGGER:- Este texto não é só uma história, é acima de tudo uma grande homenagem a um camarada de armas falecido em combate, na Guiné.

Perante tão desastrada prova de natação, lógico, seria supor-se tratar-se o seu protagonista de uma pessoa desequilibrada e medrosa. Puro engano! Ao longo da recruta, provou exactamente o contrário. Aprendeu a nadar na perfeição, esforçava-se ao máximo e conseguia cumprir, quase sempre entre os primeiros, mesmo nos exercícios e provas mais difíceis. Era, isso sim, um jovem brioso, determinado, forte e com um enorme espírito de sacrifício que, por consequência, no final da recruta, já pouco justificava a alcunha.
Natural de uma aldeola ali para os lados das Caldas da Rainha onde os pais possuíam uma típica taberna & mercearia, nos fins-de-semana em que ia a casa, era uma alegria! Vinha sempre carregado com chouriços, queijos, fruta, pão caseiro. A malta abonava-se, e a meio da semana, nem o cheiro!
Bonacheirão, alma a condizer com o corpanzil e o pessoal com a irreverência própria da idade, cheio de sangue na guelra, abusava. Havendo um trio que se destacava: o Feijó, o Ruço e o Viana. Além de serem os primeiros a abotoarem-se com os mimos que a mãe lhe aviava, pregavam-lhe tantas partidas que aquele mar de calmaria começou a dar mostras de que afinal poderia encapelar-se. Tornar-se mesmo, numa violentíssima borrasca. Um dia, depois de já lhes ter mandado uns berros para que o deixassem em paz, à noite, estando a preparar-se para se deitar, vem o Ruço da casa de banho com as mãos encharcadas, pé-ante-pé, e zás! Nas costas do Gordo. Vira-se num ápice, o ruço esquiva-se, mas não consegue evitar uma poderosa patada que o faz estatelar-se fragorosamente contra os armários. A malta acorre, e o impertinente, dorido, acabrunhado, levanta-se. Nisto chega o Viana e o Feijó. Mais animado, ensaia uma indecisa investida. O Gordo, furioso, berra-lhe: ah queres mais?... E vai-se a ele outra vez. Os outros dois tentam intervir, o Feijó fica imediatamente fora de acção com um violentíssimo soco na cara, o Viana bate em retirada e o Ruço tenta fazer o mesmo mas não consegue. È filado pelo pescoço com as duas mãos e içado. Entretanto, quase toda a companhia encavalita-se por cima das camas, uns sobre os outros, ou espreitando por qualquer nesga para não perder pitada do inesperado espectáculo. E o Ruço, com a cara vermelha que nem um tomate, qual marioneta, esperneia, tenta separar as mãos do Gordo, mas, evidentemente, em vão. A poderosa tenaz vai-o asfixiando. Começa a perder as forças e a malta o entusiasmo. Levantam-se vozes a dizer que já chega, que o largue. Mas o Gordo, fora de si, não abranda. A gritaria é cada vez maior e alguns agarram-lhe os braços tentando abri-los, dão-lhe murros, pontapés, nada! O Ruço começa a ficar roxo e já mal se mexe. O pânico é geral. A tragédia iminente. Até que o Moura, que estava de plantão, providencialmente, teve uma ideia genial: desembainha o sabre, e zás! Crava-lhe o bico numa nádega. O colosso enraivecido Solta um berro lancinante, abre os braços, e o “desgraçado”, num farrapo, estatela-se no chão.
Evidentemente que todo este sururu agravado ainda pelo facto do Feijó ter ido parar à enfermaria com um sobrolho aberto, teve que ser participado pelo Moura. Todos chamados ao Comandante de Companhia que lhes passou um valente raspanete e o corte de três fins-de-semana. Escusado será dizer que nunca mais ninguém gozou o Gordo. Mas como aquilo não era malta de rancores, os ressentimentos duraram pouco.
Terminada a recruta, seguiu-se a instrução técnica elementar (ITE) das diversas especialidades. Eu fui um dos que continuaram com o Gordo. Fomos para a Escola de Máquinas. Terminado o ITE, separámo-nos finalmente. Ele foi destacado para um draga-minas, o “S. Roque” e eu para um patrulha, o “ Maio”. Mas continuámos a ver-nos com frequência.
Um dia, fui ter com ele ao S. Roque, jantámos os dois e fomos para Lisboa. Rumámos ao Bairro Alto, calcorreámos becos e vielas, bebemos uns copos, divertimo-nos com as meninas e regressámos à Base na última vedeta. Mas andava aborrecido. O S. Roque navegava muito e ele enjoava ainda mais. “ Não nasci para isto pá! Sou bicho de terra “. E disse-me que andava a pensar concorrer aos fuzileiros. Tentei dissuadi-lo. Missões perigosíssimas esperá-lo-iam na Guiné, no Niassa ou no Leste de Angola. Determinado como era, não me deu ouvidos. Passado algum tempo, foi mesmo para Vale de Zebro onde concluiu com distinção o curso de fuzileiro especial, integrou uma companhia e partiu para a Guiné. E eu, para Lorient, França. Completar a guarnição da fragata “ Comandante João Belo” que ali perto, em Nantes, havia sido construída para a nossa Armada.
Tempos depois, a “João Belo” fez uma viagem à Guiné. À nossa chegada a Bissau, estava uma grande comitiva que vinha saber as últimas da Metrópole, dar-nos um abraço, conviver connosco. Eram camaradas nossos das guarnições do Comando Naval, dos Patrulhas, das Lanchas de Desembarque e das Companhias de fuzileiros ali estacionados em comissão de serviço. O Gordo não apareceu. Numa roda de amigos, perguntei porquê. Estaria de serviço? Estaria no mato? Ninguém respondeu e o semblante dos nossos amigos mudou radicalmente. Passados uns instantes, o Almeirim (um marinheiro fuzileiro telegrafista filho da minha escola) disse: ah vocês ainda não sabem?!... Fez menção de continuar, mas calou-se e foi sentar-se num cabeço de olhar perdido na imensidão do Atlântico.
Em contraste com o doce marulhar da leve ondulação beijando o costado da “João Belo”, longínquo, do negrume da mata e da bolanha, chegava-nos mortiço, o lúgubre crepitar da metralha.
Tenso, nervosíssimo, encharcado em suor, lentamente, o Almeirim levantou-se, aproximou-se do grupo e murmurou: numa emboscada… A voz embargou-se-lhe, as lágrimas que tentava reter, brotaram abundantes e explodiu num choro profundo. Convulsivo.
Amparámos o amigo, chorámos o outro e amaldiçoámos a guerra.
A primavera marcelista não dissipava as trevas do longo inverno salazarista e, também ali, Abril raiava.