sábado, 28 de janeiro de 2012



FRAGATA JOÃO BELO 

 Uma história de Marinha e de
Marinheiros


A Fragata João Belo, navegando em mar calmo

ANTES DE INICIAR A PUBLICAÇÃO DO NASCIMENTO DA FRAGATA COMANDANTE JOÃO BELO, VAI SER FEITA A NARRAÇÃO DE UMA HISTÓRIA VERÍDICA, ESCRITA POR UM MARINHEIRO DA 1ª GUARNIÇÃO (1967-1970).
É UMA HISTÓRIA QUE TEM UM INICIO DIVERTIDO E UM FINAL TRISTE!

ESTE ACONTECIMENTO TEVE O SEU INÍCIO NA ESCOLA Nº1 DE ALUNOS MARINHEIROS DA ARMADA, NA RECRUTA, NUMA AULA DE NATAÇÃO E TERMINADA NA FRAGATA JOÃO BELO, NA GUINÉ.


ESCOLA Nº 1 DE ALUNOS MARINHEIROS DA ARMADA ( Vila Franca de Xira-1967)
(Foto propriedade do blogger)

G1 EAM - Vila Franca de Xira-1970
Grupo 1 de Escolas da Armada, em Vila Franca de Xira-1970
G1 EAM - Vila Franca de Xira



O GORDO E ABRIL
(FZE)

BOINA DE FUZILEIRO (fuzileirosparasempre.blogspot.com)


NOTA DO BLOGGER:- Este texto não é só uma história, é acima de tudo uma grande homenagem a um camarada de armas falecido em combate, na Guiné.



… Vinte e três! O mancebo mergulha, dá algumas braçadas e sai da piscina. Vinte e quatro! Outro, e a cena repete-se. Vinte e cinco! Um matulão forte, atarracado, cara bolachuda e avermelhada, braços e pernas entreabertos, de olhos fixos na água não cumpre a ordem. Passados uns instantes, o cabo Rodrigues, mais alto, repete: Vinte e cinco! Mas o vinte e cinco, petrificado, continua absolutamente imóvel. O instrutor olha-o atentamente e interroga: então pá! Tens medo? Ainda não tinha acabado a frase e, finalmente, o Gordo (alcunha com que inevitavelmente fora baptizado) atira-se de chapa, meia piscina transborda e a Companhia irrompe numa risada geral. A barafustar e aos gritos, ergue-se, com água por debaixo dos braços, bate com toda a força, engasga-se, grita e toda a malta, com excepção do cabo Rodrigues, ri perdidamente. O cabo da companhia que até era bastante calmo, perante tão insólito comportamento e gáudio geral, num misto de irritação e surpresa, grita poderosamente: silêncio! E para o Gordo: Tem calma! Não batas na água! Tem calma! Calma! E repetia com toda a força mesmo junto dele, calma! Não batas na água! E o Gordo, com água a entrar-lhe pelo nariz e pela boca, cada vez mais desesperado não via nem ouvia ninguém. Até que o cabo Rodrigues, já em silêncio, assim como toda a Companhia, entrega a pauta a um recruta, descalça-se num ápice e mesmo vestido, atira-se à piscina, e com grande dificuldade, lá consegue acalmar e remover o aflitíssimo grumete.
Perante tão desastrada prova de natação, lógico, seria supor-se tratar-se o seu protagonista de uma pessoa desequilibrada e medrosa. Puro engano! Ao longo da recruta, provou exactamente o contrário. Aprendeu a nadar na perfeição, esforçava-se ao máximo e conseguia cumprir, quase sempre entre os primeiros, mesmo nos exercícios e provas mais difíceis. Era, isso sim, um jovem brioso, determinado, forte e com um enorme espírito de sacrifício que, por consequência, no final da recruta, já pouco justificava a alcunha. 
Natural de uma aldeola ali para os lados das Caldas da Rainha onde os pais possuíam uma típica taberna & mercearia, nos fins-de-semana em que ia a casa, era uma alegria! Vinha sempre carregado com chouriços, queijos, fruta, pão caseiro. A malta abonava-se, e a meio da semana, nem o cheiro! 
Bonacheirão, alma a condizer com o corpanzil e o pessoal com a irreverência própria da idade, cheio de sangue na guelra, abusava. Havendo um trio que se destacava: o Feijó, o Ruço e o Viana. Além de serem os primeiros a abotoarem-se com os mimos que a mãe lhe aviava, pregavam-lhe tantas partidas que aquele mar de calmaria começou a dar mostras de que afinal poderia encapelar-se. Tornar-se mesmo, numa violentíssima borrasca. Um dia, depois de já lhes ter mandado uns berros para que o deixassem em paz, à noite, estando a preparar-se para se deitar, vem o Ruço da casa de banho com as mãos encharcadas, pé-ante-pé, e zás! Nas costas do Gordo. Vira-se num ápice, o ruço esquiva-se, mas não consegue evitar uma poderosa patada que o faz estatelar-se fragorosamente contra os armários. A malta acorre, e o impertinente, dorido, acabrunhado, levanta-se. Nisto chega o Viana e o Feijó. Mais animado, ensaia uma indecisa investida. O Gordo, furioso, berra-lhe: ah queres mais?... E vai-se a ele outra vez. Os outros dois tentam intervir, o Feijó fica imediatamente fora de acção com um violentíssimo soco na cara, o Viana bate em retirada e o Ruço tenta fazer o mesmo mas não consegue. È filado pelo pescoço com as duas mãos e içado. Entretanto, quase toda a companhia encavalita-se por cima das camas, uns sobre os outros, ou espreitando por qualquer nesga para não perder pitada do inesperado espectáculo. E o Ruço, com a cara vermelha que nem um tomate, qual marioneta, esperneia, tenta separar as mãos do Gordo, mas, evidentemente, em vão. A poderosa tenaz vai-o asfixiando. Começa a perder as forças e a malta o entusiasmo. Levantam-se vozes a dizer que já chega, que o largue. Mas o Gordo, fora de si, não abranda. A gritaria é cada vez maior e alguns agarram-lhe os braços tentando abri-los, dão-lhe murros, pontapés, nada! O Ruço começa a ficar roxo e já mal se mexe. O pânico é geral. A tragédia iminente. Até que o Moura, que estava de plantão, providencialmente, teve uma ideia genial: desembainha o sabre, e zás! Crava-lhe o bico numa nádega. O colosso enraivecido Solta um berro lancinante, abre os braços, e o “desgraçado”, num farrapo, estatela-se no chão.
Evidentemente que todo este sururu agravado ainda pelo facto do Feijó ter ido parar à enfermaria com um sobrolho aberto, teve que ser participado pelo Moura. Todos chamados ao Comandante de Companhia que lhes passou um valente raspanete e o corte de três fins-de-semana. Escusado será dizer que nunca mais ninguém gozou o Gordo. Mas como aquilo não era malta de rancores, os ressentimentos duraram pouco.
Terminada a recruta, seguiu-se a instrução técnica elementar (ITE) das diversas especialidades. Eu fui um dos que continuaram com o Gordo. Fomos para a Escola de Máquinas. Terminado o ITE, separámo-nos finalmente. Ele foi destacado para um draga-minas, o “S. Roque” e eu para um patrulha, o “ Maio”. Mas continuámos a ver-nos com frequência.
Um dia, fui ter com ele ao S. Roque, jantámos os dois e fomos para Lisboa. Rumámos ao Bairro Alto, calcorreámos becos e vielas, bebemos uns copos, divertimo-nos com as meninas e regressámos à Base na última vedeta. Mas andava aborrecido. O S. Roque navegava muito e ele enjoava ainda mais. “ Não nasci para isto pá! Sou bicho de terra “. E disse-me que andava a pensar concorrer aos fuzileiros. Tentei dissuadi-lo. Missões perigosíssimas esperá-lo-iam na Guiné, no Niassa ou no Leste de Angola. Determinado como era, não me deu ouvidos. Passado algum tempo, foi mesmo para Vale de Zebro onde concluiu com distinção o curso de fuzileiro especial, integrou uma companhia e partiu para a Guiné. E eu, para Lorient, França. Completar a guarnição da fragata “ Comandante João Belo” que ali perto, em Nantes, havia sido construída para a nossa Armada.
Tempos depois, a “João Belo” fez uma viagem à Guiné. À nossa chegada a Bissau, estava uma grande comitiva que vinha saber as últimas da Metrópole, dar-nos um abraço, conviver connosco. Eram camaradas nossos das guarnições do Comando Naval, dos Patrulhas, das Lanchas de Desembarque e das Companhias de fuzileiros ali estacionados em comissão de serviço. O Gordo não apareceu. Numa roda de amigos, perguntei porquê. Estaria de serviço? Estaria no mato? Ninguém respondeu e o semblante dos nossos amigos mudou radicalmente. Passados uns instantes, o Almeirim (um marinheiro fuzileiro telegrafista filho da minha escola) disse: ah vocês ainda não sabem?!... Fez menção de continuar, mas calou-se e foi sentar-se num cabeço de olhar perdido na imensidão do Atlântico.
Em contraste com o doce marulhar da leve ondulação beijando o costado da “João Belo”, longínquo, do negrume da mata e da bolanha, chegava-nos mortiço, o lúgubre crepitar da metralha.
Tenso, nervosíssimo, encharcado em suor, lentamente, o Almeirim levantou-se, aproximou-se do grupo e murmurou: numa emboscada… A voz embargou-se-lhe, as lágrimas que tentava reter, brotaram abundantes e explodiu num choro profundo. Convulsivo.
Amparámos o amigo, chorámos o outro e amaldiçoámos a guerra.
A primavera marcelista não dissipava as trevas do longo inverno salazarista e, também ali, Abril raiava.


Francisco Ramalho, ex marinheiro CM, o “Farinha”
Corroios, Março de 2010

2 comentários:

  1. Palavras para quê? Os homens vão, o sentimento fica.
    Ao passar os olhos pela fragata João Belo, fez-me lembrar Abril de 1974.
    Eu explico:- A minha mulher e, meus dois filhos de tenra idade, embarcaram de Luanda para Lisboa na noite de 23 de Abril, ficando eu em Angola.
    Só tive conhecimento que tinham chegado bem 4 dias depois, após ter recebido um telegrama enviado Marconi via Fragata João Belo. Podem imaginar a minha alegria?
    Seguirei este blog com o maior prazer e respeito.
    Um abraço ao seu mentor.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É verdade amigo João, como falou em Abril de 1974, cá estou eu a responder-lhe em 25/04/2012!
      Nesse tempo, realmente como o nosso navio, era dos mais modernos, fazia de ponte nas comunicações para terra.
      São recordações,que ficam retidas na nossa memória para toda a vida!
      Aquele abraço

      Eliminar

Cerimónia de transferência das fragatas da classe João Belo

Crédito:-  #marinhaportuguesa     https://youtu.be/CT6AobEi6IY